Entrevista com a mestra Rita Pataxó

 



Há quanto tempo você se dedica à confecção dos carimbos? Como você desenvolveu essa prática?

RITA PATAXÓ: A ideia dos carimbos foi depois de uma necessidade que eu tive de produzir mais, porque o meu foco sempre foi fazer bolsas, sempre eu gostei de fazer bolsas, tive essa vocação pra bolsas. Aí eu fazia bolsas da renda do coco, eu fazia só renda de coco, a estopa trançada. E sempre que eu fazia essas bolsas, era tudo manualmente, tudo naturalmente, até pra tecer mesmo, tecer a renda do coco. Eu fazia ela com tucum, porque nesse época tucum era fácil, tinha, agora que dificultou as coisas. Aí Zabelê, minha mãe, Jovita faziam a linha pra mim e eu fazia essas bolsas com tucum e foi passando o tempo, o tucum foi ficando difícil da gente achar, pra gente tirar a linha. E começou a ficar difícil eu fazer esse tipo de artesanato, inclusive passei mais pra estopa, que também necessitava da linha e daí consegui a linha encerada, porque por aqui esses materiais que a gente conhece hoje não tinha, era mais difícil da gente achar. Tipo a linha encerada, o nylon, era tudo coisa que a gente mesmo produzia, a gente fazia os artesanatos com coisa que a gente produzia da natureza. E aí eu fiquei um tempo, minha adolescência, fazendo esse tipo de artesanato. Depois quando começou a aparecer aqui na nossa cidade, na nossa aldeia, a gente foi tendo acesso, aí foi chegando pessoas de fora e dando a ideia,  aí eu comecei a trabalhar com nylon e a linha encerada.

Então aí comecei fazer bolsas com aquele saco que vendia açúcar de primeiro. Antigamente tinha o pessoal vendia açúcar por quilo, pesava na balança e enrolava num papel tipo cor de madeira, e esse açúcar vinha nessas sacas grandes. Então eu ia só num comércio que tinha aqui em Cumuru, que o nome do senhor era Seu Amadeuzim, que hoje já faleceu, é finado já. Então ele juntava esses sacos pra mim e, eu fazia desses sacos de estopa, aquelas capangas, que antigamente era um saco grosso, os sacos do mesmo tipo desse algodão cru, mas era outro tipo de material. E eu comecei fazer e fazer aqueles círculos triângulos, aqueles desenhos com corante, que eu não tinha ideia de fazer uma tinta assim. E essa mulher desse comerciante mesmo, eu nunca tinha visto esmalte na minha vida, então ela começava a jogar os esmaltes fora com os esmaltes ainda dentro, aí eu fazia aquelas pinturas assim mais ou menos, nas capangas e aí vendia pra um mulher que tinha uma boutique aqui. Ela foi uma das primeiras turistas que tinha aqui, o nome dela é Rispá. Comecei a vender essas coisas pra ela e  até ela me convidar pra trabalhar com ela. Ai trabalhei com ela um tempo, inclusive Cristiane, Fia também, minha irmã. A gente começou mexer com miçanga, ela começou a ceder materiais pra gente. Eu comecei a guardar, por aí vai. Quando a gente começou a luta indígena aqui dentro de Cumuruxativa, no território Comexatibá, aí teve essa ideia de lutar pelos direitos. E aí quando eu entrei,  as coisas já estavam, tipo materiais pra fazer artesanato. Aí a gente encontrou mais ajuda de pessoas. Em algumas entre aspas né? Tipo algumas instituições começaram a ajudar a trazer algumas coisas e eu comecei a conhecer pessoas também e tal. Aí eu comecei, 2013, 2014 que veio a ideia dos carimbos. Eu tenho uma colega, uma pessoa, ela mora no Rio de Janeiro hoje. Aí eu conversando com essa colega ela falou assim: Rita seu trabalho é tão bonito, você pinta, e aí como eu já tinha começado a conhecer, tipo a tinta mesmo de tecido chega até o nosso conhecimento, eu comecei a pintar, fazer algumas pinturas nas minhas peças manualmente mesmo sabe? Só que aí veio a luta indígena, a necessidade de produzir mais, a gente começou a sair pros encontros, começou a ter acesso a outros lugares, devido a luta indigena. Daí teve a necessidade de produzir mais, pra vender mais, pra ajudar na comunidade. E aí eu conversando com essa colega, ela falou assim: Rita você pinta à mão, é trabalhoso. Ela disse assim, porque você não pensa numa coisa que seja mais rápido, mesmo que seja manual, mas que seja mais rápido: você por exemplo, pinta 10 traços de uma vez, 15 traços de uma vez sabe? Aí fiquei pensando naquilo, como que pode ser? Aí comecei a trabalhar na escola, aí trabalhando na escola comecei a ter acesso a carimbos. Carimbos desses que você carimba em alguma coisa, sabe carimbo? Desses que tem a plaquinha quadrada que você coloca o carimbo e bate lá.

Então eu falei assim: eu posso fazer um carimbo. Aí eu pensei: como eu vou criar esse carimbo? Aí fiquei pensando como eu criaria esse carimbo, aí tentei com isopor. Vou pegar um isopor, fazer uns traços, vou desenhar a pintura e tentar bater com isopor, aí não deu certo. Aí falei, o que eu posso fazer? Apareceu aqui na escola umas doações da prefeitura de Prado. Aí olhei pro EVA, apertei o EVA, esse negócio aqui pode dar certo, mas como que eu vou fazer? E eu pensei, ah já sei! Peguei uma madeirinha, fiz a pintura primeiro no caderno de desenho, vi que a pintura ficou bonita, aí pedi pra meu irmão cortar uns pedacinhos de madeira pra mim. Meu irmão cortou, aí eu fiz cortando o EVA com a tesoura, depois vi que com estilete fica mais prático. Depois eu fui só melhorando, aí cortei o EVA na forma das pinturas, como você viu que eu fiz aqui na oficina do projeto. Cortei e fui colando na madeira, pra fazer o formato da pintura na madeira com EVA. Aí coloco a tinta, começo a pintar o EVA ali na madeira. Aí fui testando as cores, as vezes quando a gente pinta, suja. Sempre que pinta, suja o carimbo, cada pintura tem que limpar o carimbo. Tipo eu pinto um tecido inteiro, aí eu tenho que limpar aquele carimbo pra tinta não estragar e por aí vai, pra eu reutilizar, pra não ser uma coisa descartável, pra ser uma coisa que eu faço e reutilizo ele. E aí, assim, foi quando eu fiz, menina, que ficou lindo, o meu primeiro encanto, até hoje eu tenho uma coisa pintada dos meus primeiros carimbos. Aí eu descobri que eu podia transformar cores, fazer cores diferentes que não existem.

Então aí Laura, eu comecei brincar com as cores. Tanto é que, com a peça, mesmo que ela seja da mesma pintura, da mesma cor, mas nunca é a mesma, não fica a mesma. Quando você coloca elas juntas, você vai observar que algum traço de cor, alguma posição da pintura, é diferente. Então nenhuma peça é igual às peças que eu faço. Quando eu quero que ela fica aquela cor, tipo aquela cor mesmo, eu tenho que ir lá, fazer, pintar, lavando, limpando o pincel, pra poder a outra cor não intercalar na de cá. Quando eu quero cores intercaladas, aí eu limpo o pincel, mas não tanto. Quando eu quero que intercala muito, eu deixo, mas não limpo o pincel, limpo só mais ou menos. Por aí vai, por isso eu to falando, nesse tipo de carimbo é manual, é trabalhoso, mas é uma trabalho bonito e que você faz cores que não existe, você cria cores. Porque daquelas cores que já tem você, cria cores que não tem no mercado, que não tem em lugar nenhum pra você comprar, por isso é que é um trabalho bonito e valorizado, que eu preciso valorizar mais sabe? Porque aqui por exemplo, dentro de Cumuru, só tem esse valor no verão, aí eu preciso de ver uma forma de vender mais, de vender para fora, pela internet. Agora que os correios estão vindo nas casas, acho que vai dar pra eu fazer isso, fazer uma lojinha virtual pra vender pela internet. E foi assim a ideia dos carimbos, aí quando veio a reintegração na nossa comunidade, aí que houve mais a necessidade.

Como você percebeu essa passagem do carimbo dos tecidos roupas para o livro?  No momento que você descobre essas técnicas você se descobre também como artista? Conta um pouco como você se vê nesse lugar das artes e como foi pra você essa transposição para o livro. 

RITA PATAXÓ: Assim, desde o início, desde sempre eu trabalho com artesanato, é minha paixão trabalhar com artesanato. Eu trabalhava em escola, em casa de família, houve a necessidade devido a desvalorização do artesanato aqui. Na época, desde que eu me conheço como gente, teve uma época que esse artesanato não tinha muito valor aqui no nosso município. Aí de um tempo pra cá, de 2000 pra cá, o artesanato começou a ter um pouco de valor assim, o valor em espécie, tipo o artesanato ser mais valorizado. Já tinha e sempre teve o valor que nós mesmos damos, porque nós amamos o nosso trabalho que é o artesanato. Mas assim a mídia, mesmo porque aqui na gente não tinha nem acesso a internet, agora que a gente começou a ter, começou a ter redes sociais, com evolução aqui na cidades , nas aldeias, começou a evoluir com a internet, o computador. Aí a gente começou a ver, mostrar o nosso trabalho e ver o valor que muitas pessoas, nem todas, mas a maioria que dá ao nosso artesanato. O valor que tem o nosso artesanato, para nós, no caso você tá perguntando pra mim, pra mim sempre teve o máximo de valor. Pra mim, o meu artesanato que eu faço, pra mim é tudo. Quando eu faço cada peça eu falo assim: “ah eu amo eu mesmo”. Sempre eu falo pra minhas filhas assim quando eu faço uma peça que mostro a elas, que elas falam “ah que lindo mainha, esse eu vou ficar”, aí eu falo pra elas assim: “é, eu amo eu mesma”, aí elas riem e elas dizem assim: “você tem que amar você mesma”. E aí houve até um tempo que eu, eu me amava, o artesanato, como até hoje, mas houve um tempo que só eu ficava vendo essa beleza porque justamente pela dificuldade, justamente pela dificuldade da divulgação

Aí houve esse tempo que a gente não tinha como divulgar o trabalho ou artesanato. Aí como falei no início, foi começando a evolução em Cumuru e dentro das aldeias aqui, depois da briga pelo território, a partir de 2000 pra cá, começou mesmo o nosso trabalho, nosso artesanato, nossa cultura. Tudo começou a fluir devido pessoas vindo pegar relatórios, fazer pesquisa e trabalho e a gente também sair e correr atrás do nosso território, as coisas e tudo, né? E aí a gente começou, começou a ganhar assim divulgação esse trabalho e começou essa valorização mesmo, da gente. Nós mesmo correndo atrás pra que esse valor viesse a acontecer, pra que essa valorização viesse a ser feita, porque pra gente sempre teve o valor como eu falei, mas da gente ver uma satisfação, ver outras pessoas falar do nosso artesanato. Tipo o livro, quando vocês vieram do projeto houve a necessidade da comunidade, teve a reintegração, teve aquele processo todo a gente ficou debilitado um tempo.

E no caso que você pergunta, quando você descobriu essa técnica como artista, você como artista. Quando eu descobri essa técnica, eu já me sentia artista, porque já fazia o artesanato, porque os carimbos foram uma coisa nova que veio agregar uma coisa que eu já sabia, uma coisa que eu já fazia, porém com outra técnica, outra metodologia de trabalho. E quando eu descobri o carimbo facilitou o meu trabalho, aumentou a minha produção, entendeu? E sem contar o que eu descobri, eu já gostava de trabalhar com cores, fiquei mais feliz ainda quando eu descobri que eu podia criar a minha própria cor a partir das outras cores, eu criar a minha própria cor e o mais interessante, cada cor que eu crio é diferente por mais parecida que seja, mas tem alguma coisa que é diferente como eu expliquei antes. Cada pintura que eu faço, mesmo que seja pintura igual, vai estar diferente, vai estar de ângulo diferente, vai estar com uma cor mais forte e outra mais fraca, uma vai estar verde outra vai estar mais..., vai ter diferença, então nenhuma peça é igual. Por isso que o nome do meu site é Luá Pataxó, mas quando eu fizer, quando, se Deus quiser, eu vou fazer a minha lojinha de artesanato, eu não vou colocar nome de loja de cabana, eu vou colocar um nome que identifica como boutique, porque são trabalhos que eu não vou encontrar isso em nenhum lugar.

O Atxuhú - Kaí e o Kijetaxawê Zabelê são livros muito diferentes entre si, mas nos dois os seus carimbos são guias, são marcas identitárias. Como você percebe essa presença dos seus carimbos nesses livros?

RITA PATAXÓ: Aí o que o livro, o que eu comecei a perceber depois do livro, pra mim foi a maior felicidade da minha vida, foi esse livro ter acontecido. Que esse projeto, Laura, você na sua pessoa, junto com Prince, Flávio que hoje tá com Deus, o urso, aquele outro, a Fabiana, as outras pessoas que agora não tô lembrando o nome, Foi a maior felicidade quando vocês entraram dentro da nossa comunidade, dentro da nossa escola, que eu já tava na escola, pra abrir esse espaço pra gente expor esse conhecimento. Então ali foi uma troca de conhecimento e tanto a gente passou o nosso conhecimento como nós recebemos de vocês e isso foi um incentivo que vocês deram pra gente. Eu não ganhei assim nenhuma coisa financeiramente falando, mas nós ganhamos muito mais que foi a divulgação desse trabalho, que a partir disso aí as pessoas veio a reconhecer o meu trabalho, valorizar esse carimbos. Quando eu vi que o que eu, a partir de uma criação minha, essa criação está se espalhando para outras pessoas não só na minha escola, como nas outras escolas e já tá fluindo até fora do Brasil esse livro tá. Inclusive que esse verão já veio pessoas de outros países atras desse livro, por isso que eu falo pra você que é necessário a gente ter mais cópias que é pra gente arrecadar um dinheiro pra gente trabalhar, pra nós, pra comunidade. Porque eu falo assim:  eu não ganhei um dinheiro em espécie por esse trabalho, mas o que eu ganhei com esse livro, a partir da publicação do livro foi muito mais, que foi levar o meu artesanato, levar a minha criação a outras pessoas, pra outras pessoas conhecerem e através disso aí eu tive mais vendas nas minhas coisas que eu faço, divulgou mais, eu fui mais reconhecida por outras pessoas não só no ambiente familiar da comunidade, mas no ambiente com outras pessoas que vieram me procurar pra eu dar palestra, dar oficina. Então o que eu vi depois dessa criação desse livro, que na realidade, o livro é todo feito com as letras do meu carimbo. Então esse livro pra mim foi um marco, um marco na minha história de comunidade, de vida, de escola, de tudo. Então é uma satisfação eu poder participar de algumas coisas que outras pessoas venham ver, venham ter conhecimento, venha aprender, então isso me deixou muito satisfeita, muito feliz e me senti valorizada que é muito importante, fazer uma coisa que você gosta e você percebe que a outra pessoa lá valorizou isso, daí não ficou só pra mim esse valor, outra pessoas veio a reconhecer isso.


Como você sente o lugar do livro para você? Como é o sonho de fazer um livro? Nessa sua vida de criar tantas coisas, como é também criar um livro?

RITA PATAXÓ: Essa ideia de se descobrir, de se criar, de acordo com o que você vai fazendo as pinturas, os traços, aquilo vai ficando mais claro e na sua mente da sua memória, dentro de você, que é dentro de mim no caso, vai surgindo outros traços. Que é como você falou, agora mesmo eu fiz pinturas aqui, que eu ainda não expus no carimbo por falta dessas borrachas mesmo incríveis. As pinturas veio, na realidade, eu durmo e sonho com algumas coisas. Na verdade, esses tempos aí, tem mais ou menos um mês por exemplo, eu tava dormindo, menina, e aí daqui a pouco começou vir em sonho aqueles traços no céu, aquelas pinturas. Menina, mais de mil pinturas aparecia na minha mente, como se fosse no céu, em formato de folha, em formato de insetos, em formato de pássaro, em formato de peixe. Assim, não era o formato do peixe, mas quando você olhava assim eu via lá fundo, dava aquela forma que eu consegui passar pro caderno, outras eu não consegui e de acordo com o que eu ia fazendo a primeira ia aparecendo a segunda, a terceira sucessivamente. Como aqui é uma casa muito frequentada, que ainda tem essa coisa de Secretaria de escola, que vem muita criança, muita professora aí eu não tenho aquele tempo de ficar concentrada escrevendo. Se eu tivesse um lugar que eu pudesse ficar concentrada , você não imagina, você vê o pouco de tempo que eu fiquei concentrada eu fiz umas pinturas aqui que eu vou tirar foto pra mostrar pra você. Uma pintura, Laura, que você nunca viu na sua vida! Pinturas que você nunca viu na sua vida, pinturas e veio o nome, tipo o que significa aquela pintura, aí foi aparecendo assim no sonho, foi aparecendo, foi aparecendo. Quando eu ainda acordei com aquelas listras assim na minha cabeça, com aqueles traços , fechava o olho, abria, quando eu abria o olho, eu continuava ainda vendo, aí eu fui no outro dia transcrever pro livro, aí eu consegui transcrever alguns e tem outras que é como se eu estivesse vendo agora, mas eu preciso de tempo, tanto é que eu vou fazer um livro de pintura minha, entendeu? Eu vou fazer um livro de pintura minha. Isso vem assim é um dom mesmo, é um dom, a palavra certa mesmo pra dizer, é o dom.

Como eu tinha te falado, mas em outras palavras, vou tentar te resumir sobre essa situação aí, como eu me sinto na questão de ter alguma coisa minha, ter essa criação, ter essas habilidades no livro. Primeiro que é a certeza, estando no livro, é a certeza que aquilo vai ficar, que aquilo vai progredir, que aquilo vai passar pra outras pessoas, é diferente da gente tá colocando o que a gente sabe, tá ensinando o que a gente sabe dentro do nosso ambiente escolar, do nossa ambiente familiar, do nosso ambiente na comunidade. É diferente, ali na comunidade, ali certamente vai ficar pros nossos familiares, vai ficar ali naquele ambiente da comunidade, e aí a gente não tem aquela certeza de que quando a gente morrer, quando a gente não tiver mais aqui nesse plano da terra, aquilo vai continuar, e estando no livro não, estando no livro é aquela sensação de que você nunca vai morrer, porque aquilo vai ficar, mesmo que isso aconteça, porque a gente sabe que isso vai ficar aqui entre nós, a gente já tem essa certeza, que vai ficar entre os nossos parentescos, os nossos familiares, a gente já tem essa certeza, os filhos, mães, irmãos e tal, a gente já tem essa certeza, mas a gente não tem essa certeza que isso vai ser passado e no livro quando a gente passa, quando a gente começa a ver nosso trabalho sendo exposto num livro onde varias pessoas vão estar vendo, a gente se sente mais. Eu não sei se a palavra certa é a gente se sente mais valorizado, a gente se sente mais realizado, eu me sinto mais realizado, quando alguém for expor o que a gente ensinou vai passar pra outras pessoas, então é uma sensação de que isso que a gente sabe nunca vai acabar, porque vai ser passado para outros. mesmo que não vai ser como se eu estivesse aqui, porque eu vou estar aqui na terra vou continuar criando se por acaso eu vir a morrer, eu não estar aqui mais pra criar mas vai ter alguma coisa minha que ficou, né? Coisa minha que eu fiz, que eu dediquei, uma coisa minha então a sensação do livro, de estar no livro é essa sensação de que eu fiz o que eu me dediquei a minha vida inteira vai ser passado não só pra uma nem duas pessoas, não só pra uma nem duas famílias, mas vai se passar pra quem sabe o mundo inteiro, né?! Então essa é a sensação. 


É aquilo mesmo que te falei, ver tudo que eu fiz, tudo que criei ser colocado num livro onde várias pessoas vão ter acesso, vão conhecer, ter o conhecimento, isso nos traz mesmo essa sensação de ser valorizado, de saber que isso vai ficar, saber que não vai morrer quando a gente morrer, saber que vai ter a possibilidade de outras pessoas usarem, sabe? Pra mim é assim. Porque não adianta a gente saber ter tanta sabedoria, inteligência, entendimento e aquilo ficar só pra nós, pra mim não adianta. É como se fosse ficar, como se fica alguma coisa muito bonita, num quarto fechado onde não vai ter ninguém pra admirar, né? Um lugar fechado, então aquela beleza se torna obscura, escondida. Essa beleza fica pra si mesma ou escondida. 

Pra mim não adianta, onde o que você faz aquilo pode ser usado, reaproveitado e valorizado e com aquilo outras pessoas também ganham porque também não é só a gente colocar pra ser reconhecido e a gente conseguir viver disso, na realidade, porque é uma sabedoria, é um conhecimento que pode se transformar num trabalho, numa fonte de sobrevivência, porque é aquilo que eu sei fazer que eu gosto de fazer, então eu quero que aquilo seja fonte de sobrevivência. 


E como foi a chegada do livro na comunidade?


RITA PATAXÓ: Esse momento em que o livro chegou na comunidade, a importância desse momento, porque a comunidade, ela tinha sofrido uma reintegração de posse onde toda a comunidade, aluno, família estavam desesperados, sabe? Desesperançados de refazer, estava todo mundo pensando em desistir, então o livro chegou pra dar reerguida, essa reanimada em toda comunidade, tanto criança, quanto anciões, quanto os jovens, que já não estavam querendo estudar mais. Porque você imagina uma criança que veio estudar debaixo de uma árvore e daí de repente a comunidade com todo seu recurso, tirando de bolsa família, tirando da boca dos seus filhos constrói uma sala mais ou menos adequada, que mesmo assim com todo esforço não era uma sala adequada, aí essas famílias constroem essa sala pra esses alunos, esses alunos já estão ali acostumados, sentindo-se felizes com aquela salinha, mesmo não tendo piso, mas tudo rebocadinho e tal, de repente vem a reintegração, acaba com tudo e as crianças tem que voltar de novo pra debaixo da árvore pra estudar, imagina só?


Imagine se na cabeça do adulto isso já fica difícil de processar, imagine uma criança que naquele momento ali da idade dela que ela mais memoriza, entendeu? Sem contar a violência que as crianças já tinham sofrido de ver homens armados entrar dentro de uma sala de aula em pleno horário de aula, mandando as crianças sair tudo pra fora, com arma em posição. A criança ver patrola, derrubando sua casinha e a criança querendo enfiar debaixo da patrola para ser destruído junto com a casa, sabe? Esses momentos  todos, eu falei que ainda vou fazer um desenho desse momento, foi o momento que a comunidade estava caída e vocês do projeto chegaram como anjos enviados por Tupã, por Jesus, deu pra dar essa reanimada, essa reerguida na comunidade. Então a partir do momento que o projeto chegou e o livro começou a ser executado, as crianças começaram a ter aquela vontade que elas não estavam tendo mais, as crianças não estavam tendo mais vontade de estudar, nem de ir pra escola nem de sair mais de casa. Qualquer polícia que passava na rua elas pensava que já tava vindo pra dentro da comunidade, qualquer patrola que passava na frente lá já pensava que ia destruir as boquinhas que tinha começado a construir de novo, sabe?! As crianças ficaram com aquele terror na mente e o livro foi tirando isso, foi tirando, foi tirando com aquelas brincadeiras, com aquelas oficinas.Não cai uma folha de uma árvore se não for permissão de Deus e tudo que acontece na nossa vida é pra gente aprender a melhorar, melhorar cada vez mais, é um aprendizado, eu levo tudo da minha vida como aprendizado, então o livro veio nesse momento, num momento muito difícil que a comunidade tava passando e esse momento que o livro chegou dentro da comunidade foi uma luz que guiou essa pessoas que estavam desanimadas a voltar a ter outra vez o seu vigor, o livro falou assim: - Não, você não pode desistir não, você é muito mais do que isso, você pode muito mais do que isso, você consegue muito mais do que isso.




A entrevista foi realizada com Rita Pataxó entre os dias 24 e 25 de março de 2021, por troca de mensagens no Whatsapp, por Laura Castro e Cacá Fonseca.


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